Ofuscamento diagnóstico no autismo: um risco silencioso à saúde integral

O ofuscamento diagnóstico no autismo é um fenômeno que compromete diretamente a qualidade da atenção à saúde das pessoas autistas. Acontece quando sinais clínicos novos ou simultâneos são erroneamente atribuídos ao diagnóstico prévio de autismo, dificultando a identificação precisa de outras condições físicas ou mentais. Isso pode levar ao subdiagnóstico, ao atraso no tratamento ou até mesmo a erros diagnósticos, impactando negativamente a saúde e a dignidade da pessoa.
Esse cenário é mais frequente do que se imagina e está presente em todas as faixas etárias, níveis de suporte e perfis funcionais dentro do espectro. Muitas vezes, um comportamento diferente, uma mudança de humor ou sintomas físicos importantes são interpretados apenas como parte do autismo, o que impede uma investigação clínica adequada. Essa prática invisibiliza o sofrimento real e reduz o acesso a intervenções necessárias, perpetuando desigualdades no cuidado.
Autismo e saúde física
Pessoas autistas apresentam taxas mais elevadas de condições físicas crônicas, como distúrbios gastrointestinais, epilepsia, doenças autoimunes, distúrbios do sono e problemas neurológicos. No entanto, esses sintomas muitas vezes são erroneamente atribuídos ao diagnóstico de autismo, dificultando o tratamento adequado.
Imagine uma criança autista que apresenta dores abdominais frequentes, constipação e perda de apetite. Em vez de considerar a possibilidade de uma condição médica, como intolerância alimentar ou síndrome do intestino irritável, esses sinais podem ser vistos apenas como problemas comportamentais. Com isso, a criança segue sofrendo, sem alívio ou cuidado efetivo.
Crises epilépticas sutis, como as de ausência, também são confundidas com falta de atenção ou desconexão. Isso retarda o diagnóstico da epilepsia, condição que exige acompanhamento neurológico. O mesmo acontece com doenças autoimunes, como diabetes tipo 1 e doença celíaca, que podem passar despercebidas devido à dificuldade em expressar sintomas e à falta de exames direcionados.
Saúde mental e autismo
O risco de desenvolver transtornos mentais como ansiedade, depressão, transtorno obsessivo-compulsivo e estresse pós-traumático é significativamente mais alto na população autista. Contudo, esses sintomas muitas vezes são confundidos com traços do próprio autismo, como retraimento social, dificuldade na expressão emocional ou comportamentos repetitivos.
Quando uma pessoa autista começa a apresentar tristeza profunda, crises de ansiedade ou pensamentos suicidas, há o perigo de que tais sintomas sejam reduzidos a características do espectro. Isso resulta em negligência no cuidado emocional e contribui para o agravamento do sofrimento psíquico.
É importante entender que o autismo não protege ninguém de sentir dor emocional. Pessoas autistas também enfrentam perdas, frustrações, rejeições e traumas. Validar essas experiências é essencial para oferecer suporte adequado e preservar a saúde mental.
Ofuscamento diagnóstico ao contrário
O ofuscamento diagnóstico no autismo também pode acontecer de forma inversa. Nesses casos, o diagnóstico de autismo não é feito porque outros transtornos já foram atribuídos à pessoa, como TDAH, ansiedade ou transtornos de personalidade. Esse cenário é especialmente comum em mulheres autistas e pessoas racializadas, que frequentemente enfrentam estigmas e estereótipos de gênero ou raça que desviam a atenção do diagnóstico correto.
Pessoas que mascaram intensamente seus traços autistas, camuflando sinais, imitando comportamentos socialmente aceitos ou forçando o contato visual, podem passar anos recebendo diagnósticos imprecisos. Isso impacta diretamente sua identidade, o acesso a comunidades de acolhimento, a autocompreensão e os direitos que acompanham o diagnóstico de autismo.
Fatores sistêmicos que perpetuam o ofuscamento diagnóstico no autismo
Diversos elementos contribuem para que o ofuscamento diagnóstico no autismo continue ocorrendo, mesmo diante de tantos avanços na compreensão da neurodiversidade. Entre eles estão o viés clínico, o treinamento limitado de profissionais da saúde, a fragmentação dos serviços e o uso excessivo de instrumentos diagnósticos padronizados.
Muitos profissionais não são capacitados para reconhecer o sofrimento psíquico em pessoas autistas, especialmente aquelas com comunicação não verbal ou com maiores níveis de apoio. Isso faz com que sintomas relevantes sejam minimizados, ignorados ou até mal interpretados.
Além disso, o atendimento à saúde costuma ser dividido em especialidades isoladas. Um médico pode olhar para a epilepsia, outro para o comportamento, outro para a saúde digestiva. Sem comunicação entre si, cada um interpreta os sinais de forma restrita e limitada, recorrendo ao autismo como explicação única para tudo o que é diferente. Isso intensifica o risco de ofuscamento diagnóstico no autismo.
Instrumentos diagnósticos também precisam ser atualizados. Muitos testes foram pensados para pessoas neurotípicas e não consideram o modo autista de ser, de comunicar e de sentir. Por isso, sintomas importantes, como traumas ou ansiedade, podem não ser detectados, especialmente em pessoas autistas com deficiência intelectual ou com formas alternativas de expressão.
Mascaramento e esgotamento autista
O mascaramento e a camuflagem social são estratégias adotadas por muitas pessoas autistas como forma de evitar julgamentos, bullying ou exclusão. Esses comportamentos incluem forçar interações, imitar expressões faciais, suprimir movimentos naturais ou esconder o desconforto diante de estímulos sensoriais.
Embora funcionem como uma armadura temporária, essas estratégias têm um custo elevado. Ao esconder os sinais reais de sofrimento, o mascaramento pode atrasar o diagnóstico de comorbidades, reforçar o ofuscamento diagnóstico no autismo e gerar um acúmulo de tensão interna que culmina no esgotamento autista. O corpo e a mente entram em colapso diante da sobrecarga de fingir normalidade e o preço é o adoecimento.
Interseccionalidade e ofuscamento diagnóstico
Pessoas autistas que pertencem a grupos racializados, de baixa renda ou que são mulheres enfrentam barreiras ainda maiores. Crianças negras, por exemplo, têm maior probabilidade de serem vistas como agressivas e receberem diagnósticos de transtornos de conduta em vez de autismo. Isso as afasta de intervenções precoces e contribui para trajetórias escolares e sociais marcadas pela punição e pelo estigma.
A interseccionalidade nos mostra que não basta olhar para o autismo isoladamente. É preciso considerar o impacto das desigualdades sociais e dos preconceitos estruturais na saúde e na vida das pessoas autistas. O ofuscamento diagnóstico no autismo tem múltiplas faces, e algumas são silenciosas justamente porque atravessam marcadores sociais pouco reconhecidos na prática clínica.
Ofuscamento diagnóstico no envelhecimento
Conforme as pessoas autistas envelhecem, o risco de ofuscamento diagnóstico aumenta. Condições comuns na terceira idade, como demência, doenças cardiovasculares, dores articulares e perda auditiva, podem ser negligenciadas ou mal interpretadas como características do autismo.
Um idoso autista que começa a se isolar mais pode estar sofrendo com uma perda auditiva não diagnosticada. No entanto, é comum que a alteração seja atribuída à falta de interesse social, perpetuando o descaso com a saúde dessa população. A ausência de cuidados adaptados, de triagens regulares e de equipes capacitadas contribui para que os idosos autistas vivam mais, mas com menos qualidade de vida.
Promover dignidade e cuidado começa com reconhecer o sofrimento
Para combater o ofuscamento diagnóstico no autismo, é fundamental formar profissionais capacitados, capazes de olhar além do rótulo e escutar o que cada pessoa realmente está expressando. Significa compreender que o autismo não anula a possibilidade de dor, de adoecimento ou de sofrimento emocional.
É preciso construir sistemas de cuidado mais integrados, que valorizem a comunicação alternativa, o relato familiar, os sinais não verbais e as manifestações sensoriais do desconforto. Valorizar a escuta clínica sensível e a investigação respeitosa é uma forma de promover justiça em saúde.
O ofuscamento diagnóstico no autismo é uma barreira silenciosa, mas potente, que precisa ser enfrentada com conhecimento, empatia e compromisso ético. Ninguém deveria ter sua dor ignorada por parecer comportamental demais. Cuidar de forma digna é reconhecer a complexidade de cada pessoa e oferecer respostas compatíveis com sua singularidade.
Assinatura da autora
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.
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