Comportamento interferente no autismo: o que há por trás de cada atitude e como acolher com intenção

comportamento interferente

No cotidiano escolar, familiar e clínico, é muito comum ouvirmos expressões como “ele teve um comportamento interferente hoje” ou “ela está cheia de comportamentos difíceis”. Embora o termo seja amplamente utilizado, especialmente no contexto do Transtorno do Espectro Autista (TEA), é preciso questionar: o que realmente queremos dizer quando usamos essa expressão? E mais importante ainda, o que esse comportamento está tentando nos comunicar?

Este artigo propõe uma mudança de olhar. Mais do que rotular, precisamos compreender o que está por trás do que chamamos de comportamento interferente. Porque, na maioria das vezes, o que está sendo chamado de problema é, na verdade, uma tentativa legítima de comunicar uma necessidade, lidar com um desconforto ou buscar alguma forma de regulação emocional.

Comportamento interferente é, quase sempre, um pedido de ajuda não verbalizado

Muitas crianças autistas apresentam dificuldades de linguagem verbal, compreensão de regras sociais e autorregulação emocional. Nessas condições, o comportamento passa a ser uma das ferramentas mais diretas de expressão. Quando uma criança com autismo se joga no chão, grita ou se recusa a participar de uma atividade, o que está acontecendo não é um “problema” no sentido pejorativo do termo, mas uma forma intensa e legítima de dizer: “algo aqui está difícil para mim”.

A ciência da Análise do Comportamento Aplicada (ABA), amplamente reconhecida como abordagem eficaz para pessoas com TEA, defende que todo comportamento tem uma função. O chamado comportamento interferente não é um acaso. Ele pode estar servindo a diferentes propósitos, como buscar atenção, escapar de uma tarefa aversiva, obter acesso a algo desejado ou autorregular sensações internas.

Quando ignoramos essa função e apenas tentamos interromper o comportamento, perdemos a chance de ensinar alternativas mais funcionais. Mais do que isso, podemos gerar frustração, desorganização emocional e, em casos mais graves, comportamentos ainda mais intensos.

O comportamento interferente precisa ser analisado no contexto em que acontece

Não existe um comportamento interferente fora de contexto. Um mesmo gesto pode ter significados completamente distintos dependendo da situação, das pessoas envolvidas e dos antecedentes. Uma criança que se recusa a entrar na sala de aula pode estar sobrecarregada com estímulos sensoriais. Outra pode estar tentando evitar uma atividade que não compreende. Um adolescente que levanta a voz com frequência pode estar, sem perceber, repetindo padrões comunicativos que vivencia em casa.

Por isso, antes de pensar em estratégias de manejo ou intervenção, é essencial realizar uma análise funcional. Essa avaliação leva em conta o que acontece antes do comportamento (antecedente), o que acontece depois (consequência) e com que frequência ele ocorre. A partir dessas informações, conseguimos identificar a função do comportamento e planejar intervenções mais efetivas e respeitosas.

Avaliação funcional: base para compreender o comportamento interferente com empatia

A Avaliação Funcional do Comportamento (AFC) é uma metodologia científica que nos ajuda a mapear padrões de comportamento interferente. Através da observação direta, entrevistas com cuidadores e educadores, e análise de registros, é possível levantar hipóteses sobre o porquê o comportamento acontece e o que ele proporciona ao indivíduo.

Esse tipo de análise permite estratégias bem mais eficazes do que punições ou contenções. Ao compreender que uma criança bate quando quer sair de um lugar barulhento, podemos intervir ensinando-a a pedir ajuda ou utilizar um cartão visual com a palavra “pausa”. Se ela entende que existe uma alternativa eficaz, o comportamento interferente deixa de ser necessário.

Comportamento interferente não se elimina com força, mas com função substituta

Um dos erros mais comuns é tentar “acabar” com o comportamento interferente sem oferecer uma alternativa funcional. Isso é como tapar uma torneira com a mão sem consertar o vazamento. A pressão aumenta até o ponto de rompimento.

Uma abordagem eficaz consiste em ensinar uma nova forma de se comunicar ou agir, que atenda à mesma necessidade, mas de maneira mais apropriada. Essa é a essência do Treinamento de Comunicação Funcional (FCT), técnica baseada em ABA que já demonstrou resultados consistentes na substituição de comportamentos inadequados por formas mais adaptadas de comunicação.

Por exemplo, uma criança que grita para pedir brinquedos pode ser ensinada a apontar, usar um PECS (Sistema de Comunicação por Troca de Figuras), ou mesmo apertar um botão de voz com a palavra desejada. Assim, ela aprende que existe um caminho eficiente para alcançar seus objetivos, sem precisar recorrer ao comportamento interferente.

Histórias reais: quando o comportamento interferente revela força e não fraqueza

Luana, de 4 anos, é uma criança com TEA que batia a cabeça no chão sempre que era contrariada. A equipe escolar acreditava se tratar de birra ou desobediência. Após uma avaliação funcional conduzida por sua terapeuta, percebeu-se que os episódios ocorriam sempre que Luana era impedida de usar o mesmo brinquedo por muito tempo. O comportamento interferente tinha a função de evitar a transição para uma nova atividade.

Com esse dado em mãos, a equipe passou a utilizar timers visuais para preparar Luana com antecedência. Introduziram também pistas visuais de próximas atividades e ensinaram gestos simples para pedir “mais tempo”. Em poucas semanas, as crises diminuíram significativamente. O que parecia um problema era, na verdade, uma forma desesperada de manter algo previsível em um mundo que parecia caótico para ela.

Esse é o poder de uma abordagem funcional: transformar o olhar e criar caminhos.

O rótulo de problema pode afastar o que deveria aproximar

Quando chamamos um comportamento de “problema”, ativamos uma lente de julgamento. Essa lente pode, sem intenção, fazer com que educadores ou cuidadores passem a reagir com irritação, medo ou distanciamento. A criança passa a ser vista como difícil, desafiadora, imprevisível. E isso pode impactar diretamente a forma como ela é acolhida, ensinada e acompanhada.

Trocar o rótulo por compreensão é um ato de dignidade. É reconhecer que há sempre uma intenção legítima por trás do comportamento interferente, mesmo que ele se apresente de forma disfuncional. Essa mudança de olhar é transformadora para todos os envolvidos.

Comportamento interferente e inclusão: um compromisso coletivo

A inclusão real não acontece apenas quando aceitamos a presença de uma criança autista em sala. Ela acontece quando compreendemos que todos os comportamentos, inclusive os mais desafiadores, merecem ser escutados com sensibilidade. O comportamento interferente não pode ser visto como um obstáculo à inclusão, mas sim como uma oportunidade de ensinar, ajustar e caminhar juntos.

A escola inclusiva, segundo Mantoan (2015), não é aquela que “aceita” o diferente, mas aquela que se transforma para acolher. Ao entender o comportamento interferente sob a ótica da funcionalidade, transformamos práticas, expectativas e relações.

Como prevenir o comportamento interferente com práticas baseadas em evidências

  1. Antecipe sempre que possível. Utilize pistas visuais, timers e explicações claras antes de transições e mudanças de rotina.
  2. Esteja atento ao ambiente. Luzes fortes, barulhos excessivos ou cheiros intensos podem ser gatilhos para comportamentos difíceis.
  3. Dê escolhas reais. Oferecer opções dentro de uma tarefa pode aumentar a colaboração e reduzir a frustração.
  4. Reforce comportamentos adequados. Celebre os pequenos avanços e reconheça os esforços da criança de se comunicar de maneira mais funcional.
  5. Trabalhe com equipe interdisciplinar. A intervenção sobre comportamento interferente deve ser construída em parceria com fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos e educadores.

Reflexão final: o que essa criança precisa agora?

Quando lidamos com comportamento interferente, a pergunta que mais importa não é “como faço isso parar”, mas sim “o que essa criança está tentando me mostrar”. Esse deslocamento do foco leva a intervenções mais éticas, eficazes e afetivas.

Como profissionais da saúde, educação e cuidado, nosso papel não é moldar a criança ao que consideramos ideal, mas oferecer recursos, segurança e caminhos para que ela possa se desenvolver em sua forma única de ser. O comportamento interferente, visto com essa lente, deixa de ser um obstáculo e passa a ser um convite.

Assinatura Oficial da Autora
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.

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