Autismo e ansiedade: a sobreposição invisível que precisa ser compreendida

autismo e ansiedade

Muitas vezes, quando observamos uma criança, adolescente ou adulto autista passando por uma crise, evitando lugares ou reagindo de maneira intensa a estímulos aparentemente inofensivos, tendemos a atribuir esses comportamentos exclusivamente ao diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista. No entanto, existe uma condição que frequentemente acompanha o TEA e que, quando não reconhecida, aprofunda o sofrimento emocional e dificulta o desenvolvimento pleno. Estamos falando da relação entre autismo e ansiedade, uma sobreposição tão comum quanto silenciosa, que ainda é pouco compreendida por profissionais, educadores e familiares.

Este artigo é um convite à escuta atenta e à compreensão ampliada. Ao abordar a conexão entre autismo e ansiedade, buscamos não apenas informar, mas sensibilizar. Afinal, enxergar além do comportamento é o primeiro passo para uma intervenção mais respeitosa e eficaz.

Autismo e ansiedade caminham juntos com mais frequência do que se imagina

Estudos recentes apontam que entre 40% e 50% das pessoas com autismo apresentam algum tipo de transtorno de ansiedade. Esse número é significativamente mais alto do que na população neurotípica. Ainda assim, muitas vezes a ansiedade não é diagnosticada, pois seus sinais se confundem com os próprios traços do espectro. Essa confusão tem nome: ofuscamento diagnóstico.

O ofuscamento diagnóstico acontece quando os profissionais de saúde mental interpretam sintomas como parte de uma condição primária e, por isso, deixam de investigar outras causas. No caso do autismo e ansiedade, isso é particularmente relevante. A rigidez comportamental, a evitação social ou a resistência a mudanças podem ser vistas apenas como características do TEA, quando, na verdade, são manifestações de ansiedade intensa. Ao ignorar essa possibilidade, deixamos de oferecer suporte adequado e, por consequência, aumentamos o sofrimento emocional de quem já enfrenta desafios complexos.

Como a ansiedade se manifesta em pessoas com autismo

A ansiedade nem sempre se apresenta da maneira clássica nas pessoas autistas. Em vez de verbalizar preocupações ou demonstrar nervosismo de forma evidente, muitas delas expressam seu desconforto por meio de reações comportamentais específicas. Entre as manifestações mais frequentes da ansiedade no autismo, destacam-se:

  • Reações intensas diante de mudanças inesperadas na rotina
  • Evitação de ambientes com excesso de estímulos sensoriais, como luzes fortes ou sons altos
  • Rigidez em tarefas e padrões como forma de manter o controle
  • Hipervigilância em contextos sociais, como festas, escolas ou consultas médicas
  • Isolamento e retraimento após experiências estressantes

Esses comportamentos, quando analisados apenas à luz do autismo, correm o risco de serem naturalizados. No entanto, são sinais claros de que algo interno está gerando angústia. Reconhecer a presença da ansiedade nessas situações é fundamental para promover qualidade de vida.

A relação entre autismo e ansiedade vai além da soma de diagnósticos

Quando falamos de autismo e ansiedade, não estamos tratando apenas de duas condições que coexistem. A forma como a ansiedade se expressa nas pessoas autistas é diretamente influenciada pelas características do espectro. Isso exige uma escuta mais apurada e uma leitura mais cuidadosa do comportamento.

Por exemplo, uma criança autista que entra em crise toda vez que o transporte escolar atrasa não está apenas sendo “inflexível”. Muito possivelmente, ela sente uma ansiedade desproporcional diante da imprevisibilidade, porque depende da previsibilidade para se sentir segura. Da mesma forma, um adolescente que se recusa a comer em locais públicos pode não estar apenas evitando socialização, mas tentando proteger-se de estímulos que causam desconforto físico e emocional.

A ansiedade no contexto do autismo é multifacetada. Pode estar relacionada ao medo do erro, ao excesso de estímulos sensoriais, à dificuldade em interpretar interações sociais ou até mesmo à frustração por não conseguir expressar o que sente. Por isso, reconhecer essa sobreposição é tão importante. Ela muda completamente a abordagem que devemos adotar.

O impacto de não reconhecer a ansiedade em pessoas com autismo

Ignorar a presença de ansiedade em uma pessoa autista não apenas priva o indivíduo de suporte emocional, mas também compromete seu processo de aprendizagem, sua interação social e sua autoestima. As consequências podem incluir:

  • Atraso no início de intervenções adequadas
  • Agravamento de sintomas como insônia, irritabilidade ou comportamentos repetitivos
  • Redução do desempenho acadêmico por dificuldade de concentração
  • Isolamento crescente e baixa autoestima
  • Uso inadequado de estratégias terapêuticas que não consideram o sofrimento emocional

Além disso, muitas famílias acabam se sentindo perdidas diante de comportamentos intensos e aparentemente sem explicação. Quando não se reconhece a ansiedade como fator contribuinte, os adultos responsáveis pela criança podem recorrer a punições, cobranças excessivas ou ainda a interpretações erradas como “birra” ou “manipulação”. Isso aprofunda a lacuna entre a criança e os adultos, comprometendo o vínculo afetivo.

Como acolher o autismo e ansiedade de forma integrada

Diante dessa realidade, é fundamental que profissionais e famílias adotem uma abordagem integrada, que considere tanto o diagnóstico de TEA quanto os sinais de ansiedade. A seguir, apresento caminhos possíveis para esse acolhimento mais completo.

Avaliação clínica diferenciada

Profissionais que acompanham pessoas com autismo devem estar capacitados para identificar manifestações atípicas de ansiedade. Isso inclui conhecer os sinais comportamentais sutis, aplicar escalas adaptadas para a população autista e, principalmente, ouvir os relatos das famílias com atenção. A avaliação precisa considerar o histórico individual, os contextos em que o comportamento ocorre e as estratégias que já foram tentadas anteriormente.

Intervenções terapêuticas personalizadas

A Terapia Cognitivo-Comportamental, quando adaptada ao perfil autista, tem se mostrado eficaz no manejo da ansiedade. Técnicas como roteiros sociais, uso de histórias visuais, identificação de emoções e estratégias de autorregulação emocional podem ser implementadas com bons resultados. O importante é respeitar o estilo cognitivo do indivíduo, utilizando uma linguagem concreta, previsível e com apoio visual sempre que necessário.

Ambientes organizados e sensorialmente ajustados

Ambientes previsíveis, tranquilos e com estímulos sensoriais ajustados reduzem significativamente os gatilhos de ansiedade. Isso vale para a casa, a escola, a clínica e também para espaços públicos. Uma simples reorganização da rotina ou do espaço físico pode gerar grandes mudanças na qualidade de vida. Evitar sobrecarga sensorial, antecipar mudanças e oferecer tempo de transição são estratégias práticas e acessíveis.

Envolvimento ativo da família

A família tem um papel essencial no reconhecimento e manejo da ansiedade. São os cuidadores que percebem primeiro os pequenos sinais de alteração comportamental, as mudanças de humor ou as reações a determinados eventos. Por isso, orientações claras, encontros regulares com a equipe técnica e espaço para escuta são tão importantes. Famílias bem informadas sentem-se mais seguras para intervir, proteger e apoiar.

História ilustrativa: o caso de Miguel

Miguel tem 10 anos, é autista e frequenta uma escola regular. Apesar de ser considerado verbal, raramente expressa o que sente. Toda segunda-feira, ao chegar na escola, apresenta náuseas e dor de cabeça. Após meses de investigação, descobriu-se que a troca semanal de professores nas segundas gerava intensa ansiedade em Miguel. Como ele não conseguia antecipar quem o receberia, seu corpo reagia com sintomas físicos.

Ao identificar essa relação entre autismo e ansiedade, a equipe pedagógica passou a enviar com antecedência uma imagem do professor da semana e adaptou a rotina de entrada, permitindo que Miguel fosse recebido por um rosto familiar. Em poucas semanas, os sintomas desapareceram. A chave foi enxergar além da queixa e buscar a raiz do sofrimento emocional.

Educar com sensibilidade é reconhecer que o comportamento tem uma razão

Todo comportamento comunica algo. Quando nos deparamos com reações intensas, evitativas ou repetitivas em pessoas com autismo, precisamos nos perguntar: o que este comportamento está tentando me mostrar? Essa pergunta abre portas para uma prática mais respeitosa e assertiva, que considera o ser humano na sua totalidade, e não apenas seu diagnóstico.

O acolhimento do autismo e ansiedade exige empatia, ciência e escuta. Exige também humildade para reconhecer que muitas vezes não sabemos o que o outro sente, mas podemos caminhar ao lado dele em busca de bem-estar.

Conclusão: o sofrimento silencioso precisa ser reconhecido

A ansiedade em pessoas com autismo é real, frequente e muitas vezes mal compreendida. Ela se apresenta de formas diferentes, exige intervenções adaptadas e precisa ser considerada em todas as etapas do acompanhamento clínico, educacional e familiar. Quando reconhecemos a presença simultânea de autismo e ansiedade, deixamos de olhar apenas para o diagnóstico e passamos a enxergar o sujeito em sua complexidade.

Promover bem-estar, autonomia e desenvolvimento exige mais do que técnicas. Exige uma mudança de olhar. E essa mudança começa quando paramos de julgar o comportamento e passamos a escutar o que ele está dizendo.

Assinatura oficial da autora
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.

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