Maternidade atípica: quando o cuidado silencioso exige reconhecimento, apoio e reconstrução de identidade

maternidade atípica

A maternidade atípica é uma experiência marcada por intensas camadas de entrega, renúncia, dor e amor. Embora muitas mulheres se sintam profundamente conectadas ao papel de mães, especialmente quando se trata de cuidar de filhos com desenvolvimento atípico, essa experiência frequentemente se transforma em uma vivência solitária e invisível. É nesse contexto que surgem sentimentos profundos de esgotamento físico e emocional, acompanhados por uma culpa persistente e por um apagamento da identidade pessoal.

A maternidade atípica não se refere a uma maternidade melhor ou pior. Ela é simplesmente diferente. Difere porque exige mais horas de atenção, mais decisões clínicas, mais vigílias noturnas, mais adaptações no cotidiano e mais força emocional. E, ainda assim, raramente é reconhecida por sua complexidade. Em muitos espaços, a mulher que cuida de uma criança com Transtorno do Espectro Autista ou outra condição do neurodesenvolvimento é vista apenas como mãe, como se sua história própria tivesse sido completamente apagada a partir do diagnóstico do filho.

Quando o cuidado na maternidade atípica se transforma em exaustão invisível

A maternidade atípica é atravessada por uma carga mental e afetiva constante. Muitas mães passam a desempenhar um papel de cuidadoras integrais, sendo responsáveis por intermediar terapias, organizar agendas sobrecarregadas, interpretar sinais de crises emocionais ou sensoriais, adaptar ambientes e mediar interações sociais. Frequentemente, também são essas mães que interrompem ou reorganizam suas carreiras profissionais para acompanhar de perto a evolução dos filhos.

Essa dedicação, embora feita com amor, pode levar a um quadro de exaustão chamado burnout materno. Trata-se de uma síndrome reconhecida na literatura científica, caracterizada pela sensação de colapso emocional, cansaço crônico, baixa autoestima e perda do prazer na relação com os filhos. Segundo estudos recentes, mães de crianças com TEA apresentam índices significativamente maiores de ansiedade, depressão e isolamento social quando comparadas à população geral (Kütük et al., 2021).

Essa exaustão não é apenas resultado de noites mal dormidas ou de demandas comportamentais. Ela é resultado também da ausência de suporte, da falta de reconhecimento, do acúmulo de funções e da escuta insuficiente por parte dos profissionais e da sociedade.

A maternidade atípica e a culpa como sombra constante

Uma das emoções mais recorrentes na maternidade atípica é a culpa. Muitas mulheres relatam sentir culpa por não terem percebido os sinais precocemente, por não conseguirem oferecer atenção igualitária aos irmãos típicos, por não conseguirem manter a paciência em todas as situações ou simplesmente por desejarem um momento de pausa para si mesmas.

Essa culpa é alimentada por discursos sociais que idealizam a maternidade como renúncia absoluta, como se amar um filho significasse abrir mão de toda necessidade individual. Na maternidade atípica, essa pressão se intensifica, pois qualquer afastamento do cuidado é imediatamente interpretado como abandono, mesmo que temporário. Assim, muitas mães seguem silenciando seus sentimentos em nome do que acreditam ser melhor para seus filhos, acumulando sofrimento emocional.

A identidade fragmentada pela maternidade atípica

Após o diagnóstico do filho, não é raro que a mulher passe a organizar sua vida exclusivamente em torno da criança. Projetos pessoais, amizades, carreira, hobbies e sonhos anteriores são gradualmente deixados de lado. O tempo se torna escasso e a energia, direcionada quase exclusivamente ao cuidado do outro.

A pergunta “quem sou eu além da mãe?” surge com frequência e, muitas vezes, permanece sem resposta. Esse processo de apagamento identitário não ocorre de forma abrupta. Ele se dá aos poucos, pela ausência de espaços de escuta, pela falta de tempo livre e pela desvalorização do papel de cuidadora dentro das próprias redes de apoio.

O impacto dessa perda de identidade é profundo. Mulheres que antes se sentiam realizadas profissionalmente, criativas em suas expressões artísticas ou socialmente ativas, passam a se sentir vazias, improdutivas e culpadas por desejarem resgatar essas partes de si mesmas. Esse vazio pode ser um terreno fértil para o surgimento de quadros depressivos, baixa autoestima e sensação de solidão extrema.

A maternidade atípica e a invisibilidade nos espaços sociais

Mesmo sendo o eixo central de sustentação de muitos processos terapêuticos, educacionais e familiares, a mãe atípica frequentemente permanece invisível. No consultório, é vista como acompanhante. Na escola, como suporte eventual. Na sociedade, como pilar da família. No entanto, raramente é percebida como uma pessoa com necessidades próprias de acolhimento, descanso e cuidado.

A maternidade atípica é exigente e extensa. Ela ultrapassa a lógica do cuidado convencional. Demanda conhecimento técnico, inteligência emocional, habilidades de mediação e capacidade de reorganização permanente. Ainda assim, políticas públicas voltadas para essas mães são praticamente inexistentes. Poucos são os programas que oferecem acolhimento psicológico, oportunidades de capacitação ou medidas que reconheçam o cuidado como trabalho não remunerado.

Essa ausência de reconhecimento não apenas perpetua o sofrimento, como também impede que essas mulheres ocupem espaços de construção coletiva. Ao serem mantidas apenas na função de cuidadoras, perdem oportunidades de participar de decisões políticas, de construir redes de apoio mútuo e de se reconectar com sua própria identidade.

Histórias que revelam o cotidiano da maternidade atípica

É possível ilustrar essa realidade com a história de Clara, mãe de Pedro, uma criança de 8 anos com diagnóstico de autismo moderado. Desde que recebeu o diagnóstico, Clara reorganizou toda sua rotina, abandonou o emprego como fisioterapeuta e passou a acompanhar Pedro em todas as terapias. Em seu relato, ela conta que se sente constantemente esgotada, mas também invisível. Em seus próprios termos, ela diz que parece ter se transformado em uma extensão do filho, e não mais em uma mulher com nome, história e desejos próprios.

A história de Clara é semelhante à de milhares de mulheres que, embora vivam intensamente a maternidade atípica, seguem sem espaço para falar de si. Elas carregam o cuidado no corpo, nas emoções e na alma, muitas vezes sem serem vistas.

Caminhos possíveis para transformar a experiência da maternidade atípica

Transformar a realidade da maternidade atípica exige mais do que empatia. São necessárias ações concretas que promovam o cuidado com quem cuida. Grupos de apoio emocional, conduzidos por profissionais especializados, são um primeiro passo importante. Esses espaços oferecem escuta qualificada, acolhimento sem julgamento e a oportunidade de compartilhar experiências com outras mães que vivem desafios semelhantes.

Além disso, políticas públicas devem reconhecer a maternidade atípica como uma condição que exige suporte contínuo. Isso inclui medidas como licença estendida, apoio financeiro, acolhimento psicológico, formação profissional e incentivos à reinserção no mercado de trabalho. A maternidade atípica precisa deixar de ser vista apenas como um dom e passar a ser compreendida como uma realidade complexa, que envolve direitos, deveres e necessidades humanas legítimas.

Dentro do ambiente familiar, a distribuição mais justa das tarefas de cuidado também é essencial. Parcerias igualitárias, envolvimento real de familiares, compreensão por parte da escola e colaboração entre instituições podem aliviar a sobrecarga e possibilitar momentos de descanso e autorregulação para a mãe.

Reconhecer a maternidade atípica é cuidar da saúde de toda a família

Quando a sociedade cuida de uma mãe, ela está, na verdade, cuidando de uma criança. Ao validar os sentimentos da mulher que sustenta, organiza e orienta todo o processo de cuidado, garantimos também mais qualidade de vida para a criança com desenvolvimento atípico. Reconhecer o esgotamento, acolher a culpa, promover reconstruções identitárias e oferecer suporte são formas de cuidar de forma integral, não apenas do corpo materno, mas da alma que o habita.

A maternidade atípica não é invisível por falta de presença. Ela é invisível porque tem sido ignorada por um sistema que ainda coloca a mulher em um papel de doação contínua, sem retorno afetivo ou institucional. É tempo de mudar esse olhar.

Assinatura Oficial da Autora
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.

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