TOC e autismo: entendendo a comorbidade e promovendo cuidado com empatia e ciência

A convivência entre TOC e autismo é um tema cada vez mais presente nas discussões clínicas e familiares, sobretudo quando observamos o impacto que essa comorbidade pode gerar na rotina, no bem-estar e na qualidade de vida das pessoas envolvidas. Entender a relação entre TOC e autismo é fundamental para que o diagnóstico seja preciso, o tratamento seja eficaz e as intervenções sejam ajustadas à realidade sensorial, cognitiva e emocional da pessoa.
Quando falamos sobre TOC e autismo, é comum que surjam dúvidas sobre onde termina uma condição e onde começa a outra. Isso acontece porque ambos os transtornos envolvem comportamentos repetitivos, rigidez mental e respostas intensas à mudança. No entanto, existem diferenças significativas em sua origem, em sua função e no modo como impactam a pessoa no dia a dia.
Neste artigo, exploraremos a relação entre TOC e autismo com base científica, linguagem acessível e abordagem acolhedora. O objetivo é oferecer informações claras, promover consciência e apoiar cuidadores, profissionais e famílias na compreensão dessa comorbidade tão desafiadora quanto possível de ser manejada com cuidado e conhecimento.
O que dizem os estudos sobre a coexistência dessas condições
O Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é um transtorno psiquiátrico caracterizado por pensamentos obsessivos recorrentes e comportamentos compulsivos que visam neutralizar a ansiedade provocada por esses pensamentos. Já o Transtorno do Espectro Autista é uma condição do neurodesenvolvimento que envolve diferenças na comunicação, na interação social e na flexibilidade comportamental.
Estudos recentes apontam que pessoas autistas têm de duas a três vezes mais chances de desenvolver TOC do que a população geral. Estima-se que entre 6% e 10% das crianças com autismo apresentem sintomas compatíveis com TOC em algum momento da vida. Em contrapartida, a prevalência de TOC na população geral gira em torno de 2%.
Esses dados reforçam a importância de falarmos sobre TOC e autismo de forma integrada, compreendendo que essa sobreposição de sintomas exige uma escuta clínica apurada, intervenções específicas e apoio contínuo ao longo da vida.
Como diferenciar compulsões de estereotipias
Um dos grandes desafios ao lidar com TOC e autismo é diferenciar os comportamentos compulsivos das estereotipias. Ambos os comportamentos são repetitivos e podem parecer semelhantes à primeira vista. No entanto, há uma diferença fundamental entre eles.
As estereotipias no autismo, como balançar o corpo, bater palmas ou girar objetos, geralmente têm função autorregulatória. Elas são realizadas para acalmar, organizar o sistema sensorial ou simplesmente por prazer. Costumam ser voluntárias e não geram sofrimento à pessoa.
Já os comportamentos compulsivos no TOC têm como objetivo reduzir a ansiedade provocada por pensamentos obsessivos. A pessoa sente-se obrigada a realizá-los, mesmo contra a própria vontade, e geralmente reconhece que eles são excessivos, mas não consegue interrompê-los sem grande desconforto.
Entender essa distinção é crucial para o diagnóstico correto e para a escolha do tratamento mais adequado quando estamos diante de casos em que TOC e autismo coexistem.
Quando os sintomas se sobrepõem
Em muitos casos, os sintomas de TOC e autismo se sobrepõem, dificultando a compreensão das manifestações. Crianças e adolescentes autistas podem apresentar comportamentos extremamente organizados, insistência em rotinas rígidas, necessidade de alinhamento de objetos ou rituais específicos antes de dormir ou sair de casa.
Essas manifestações podem ser parte das características do autismo, mas também podem indicar sintomas obsessivo-compulsivos. A diferença está na função e na percepção da pessoa sobre o comportamento. No TOC, há sofrimento associado e tentativa constante de evitar ou resistir aos pensamentos e rituais.
Quando TOC e autismo estão presentes na mesma pessoa, os sintomas podem ser mais intensos e causar prejuízos significativos no cotidiano. A rigidez aumenta, a flexibilidade cognitiva diminui ainda mais e a ansiedade torna-se constante, exigindo intervenções individualizadas e baseadas em evidências.
Como os sintomas se manifestam
Em pessoas com TOC e autismo, os sintomas mais comuns incluem:
- Pensamentos obsessivos com temas como contaminação, simetria, organização, danos ou erros.
- Comportamentos compulsivos como lavar as mãos repetidamente, contar objetos, organizar itens de forma exata ou realizar rituais antes de determinada ação.
- Sensação de angústia intensa quando algo sai da ordem ou da rotina habitual.
- Necessidade de realizar atos específicos para “neutralizar” um pensamento indesejado.
Em indivíduos autistas, esses comportamentos podem estar associados também a hipersensibilidades sensoriais e dificuldades de comunicação, o que torna o diagnóstico ainda mais complexo.
Quais as opções de tratamento
O tratamento de TOC e autismo precisa ser personalizado e adaptado à faixa etária, ao grau de suporte necessário e às particularidades sensoriais e cognitivas da pessoa. A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tem se mostrado eficaz no manejo dos sintomas obsessivo-compulsivos, inclusive em pessoas dentro do espectro autista.
A TCC voltada para TOC trabalha na identificação dos pensamentos automáticos, no enfrentamento gradual dos comportamentos compulsivos e na reestruturação das crenças disfuncionais. Quando adaptada com uso de recursos visuais, linguagem concreta e rotinas visíveis, pode ser uma ferramenta muito poderosa para pessoas autistas.
Além da terapia, o tratamento medicamentoso pode ser indicado. Os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), como a fluoxetina e a sertralina, são os mais utilizados no controle do TOC. No entanto, o uso de medicamentos deve sempre ser acompanhado por profissionais qualificados, com monitoramento constante dos efeitos.
O apoio da família, da escola e da equipe multiprofissional é essencial para o sucesso do tratamento de TOC e autismo. É preciso que todos os envolvidos compreendam a complexidade da condição e estejam alinhados na condução do plano terapêutico.
A importância de reconhecer a comorbidade
A coexistência de TOC e autismo é classificada como comorbidade. Isso significa que as duas condições estão presentes simultaneamente, mas não necessariamente têm a mesma origem. Estudos mostram que até 84% das pessoas com autismo apresentam algum tipo de transtorno de ansiedade, e cerca de 17% delas podem desenvolver TOC.
Essa comorbidade precisa ser reconhecida e tratada com responsabilidade. Quando TOC e autismo coexistem, há um risco aumentado de retraimento social, sofrimento emocional e prejuízo funcional. Ignorar a presença do TOC em pessoas autistas é negligenciar uma condição que pode ser tratada com bons resultados.
O diagnóstico correto depende de uma avaliação criteriosa, que leve em conta a história do paciente, a função dos comportamentos e os fatores contextuais que influenciam sua manifestação.
Como apoiar de forma empática e funcional
Para apoiar uma pessoa com TOC e autismo, é importante adotar uma postura empática, informada e prática. Algumas recomendações incluem:
- Validar os sentimentos da pessoa sem reforçar os comportamentos compulsivos.
- Evitar punições, confrontos ou ironias sobre os rituais realizados.
- Oferecer previsibilidade, rotina clara e espaços de autorregulação.
- Estabelecer metas pequenas e progressivas para lidar com os sintomas.
- Manter comunicação com os profissionais responsáveis pelo tratamento.
- Informar-se continuamente sobre TOC e autismo para ampliar a compreensão.
A família tem um papel central nesse processo. Quando acolhe, escuta e caminha junto, contribui para a estabilidade emocional e o progresso terapêutico da pessoa com TOC e autismo.
Considerações finais
A relação entre TOC e autismo é complexa, mas compreensível quando olhada com cuidado e respeito. Saber reconhecer as diferenças entre comportamentos típicos do espectro e sintomas obsessivo-compulsivos permite intervenções mais precisas e humanizadas.
Com apoio profissional qualificado, estratégias baseadas em evidências e uma rede de suporte consistente, é possível oferecer à pessoa com TOC e autismo mais conforto, autonomia e qualidade de vida. A escuta ativa, a paciência e o compromisso com a inclusão são os pilares de uma jornada terapêutica que respeita a individualidade e promove transformação.
Assinatura oficial da autora:
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.
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