Música e Autismo: quando o som se torna cuidado e conexão

VA música é uma linguagem universal, capaz de atravessar barreiras culturais, emocionais e até neurológicas. Em contextos terapêuticos, esse potencial se amplifica. Quando falamos sobre música e autismo, estamos nos referindo a uma ferramenta potente de conexão, regulação e expressão, que atua de forma concreta sobre o bem-estar e o desenvolvimento de pessoas no espectro autista.
Mais do que um simples estímulo agradável, a música, quando utilizada com intencionalidade, pode se transformar em um verdadeiro recurso terapêutico. Para muitos autistas, ela oferece um espaço seguro onde emoções difíceis podem ser reconhecidas, reorganizadas e vividas com mais conforto. Em momentos de ansiedade ou sobrecarga sensorial, a música pode ser o fio que reconecta a pessoa ao equilíbrio interno.
Música e autismo
O uso da música em contextos terapêuticos não é novo, mas seu impacto no autismo tem ganhado cada vez mais evidência. Segundo a American Music Therapy Association, a musicoterapia pode melhorar a comunicação, a regulação emocional e a interação social de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) destaca que dificuldades na comunicação e na regulação emocional são características centrais no autismo, o que torna a música e autismo uma combinação extremamente relevante para estratégias de intervenção.
A música estimula regiões cerebrais relacionadas à emoção, memória e linguagem. Mesmo quando o acesso verbal é limitado, como em muitas crianças autistas, a resposta musical pode permanecer preservada. Isso significa que a música não exige da pessoa com TEA o mesmo esforço cognitivo que a linguagem verbal, tornando-se uma via de comunicação acessível e sensível.
Por que música e autismo funcionam tão bem juntos?
Para compreender o vínculo entre música e autismo, é preciso olhar para o modo como o cérebro processa sons e emoções. Pessoas autistas muitas vezes enfrentam desafios para identificar ou nomear sentimentos. A música, ao evocar sensações de maneira não verbal, pode atuar como uma ponte entre o sentir e o expressar.
Além disso, muitas pessoas com TEA lidam com hiper ou hipossensibilidade sensorial. Sons do cotidiano, como o barulho do aspirador, o toque do despertador ou uma conversa cruzada podem causar desconforto. Por outro lado, ritmos previsíveis, melodias suaves e padrões sonoros repetitivos presentes na música podem regular o sistema sensorial, ajudando na autorregulação emocional e física.
Outra característica importante da música é sua previsibilidade. Canções com estrutura repetitiva, batidas suaves e letras conhecidas oferecem segurança. Em momentos de estresse, ter uma trilha sonora familiar pode fazer toda a diferença na organização interna da pessoa com autismo.
Música e autismo
A relação entre música e autismo vai além da experiência subjetiva. Estudos científicos demonstram que ouvir música pode ativar o sistema nervoso parassimpático, responsável por reduzir os níveis de estresse no corpo. Isso significa que, ao ouvir uma canção que gosta, a pessoa autista pode experimentar:
- Diminuição da frequência cardíaca
- Respiração mais lenta e profunda
- Redução da tensão muscular
- Melhora na concentração
É como se a música, ao entrar pelos ouvidos, enviasse uma mensagem de calma ao corpo inteiro. E essa resposta é especialmente valiosa para pessoas autistas que vivem com altos níveis de ansiedade ou que se desorganizam diante de mudanças na rotina.
Além disso, a música pode atuar como uma distração positiva. Em momentos de crise, ela desvia o foco dos estímulos aversivos e oferece uma nova direção ao cérebro. É como um abrigo sonoro que protege, reorganiza e reenergiza.
Aplicações práticas da música no cotidiano de pessoas com TEA
Integrar música e autismo de forma prática no dia a dia é possível e altamente benéfico. A seguir, alguns exemplos de como famílias, cuidadores e profissionais podem utilizar a música como apoio terapêutico:
1. Playlists personalizadas
Criar uma seleção de músicas com base nas preferências da criança pode ser uma ferramenta simples e eficaz. Uma música calma antes de dormir, outra mais animada para transições difíceis (como trocar de ambiente) e uma melodia favorita para momentos de frustração podem ser verdadeiros reguladores emocionais.
2. Participação ativa na música
Tocar instrumentos simples como tambores, chocalhos ou xilofones permite que a criança interaja com o som de forma corporal. Cantar junto ou marcar o ritmo com palmas promove engajamento, coordenação e expressão.
3. Sessões de musicoterapia com profissionais
Musicoterapeutas especializados em autismo criam intervenções personalizadas que integram os objetivos terapêuticos à resposta musical da criança. Isso potencializa a eficácia e proporciona ganhos significativos em áreas como comunicação funcional, socialização e desenvolvimento motor.
4. Música como transição e estruturação de rotinas
Algumas crianças se beneficiam de músicas-tema para cada momento do dia: uma para escovar os dentes, outra para guardar os brinquedos, outra para ir à escola. Essa estratégia transforma a música em marcador de rotina e reduz a resistência a transições.
Música e autismo
A combinação entre música e autismo já foi estudada por diferentes grupos de pesquisa. Um estudo publicado no periódico Frontiers in Psychology (2018) mostrou que crianças autistas submetidas à musicoterapia apresentaram melhorias significativas na comunicação social e no comportamento adaptativo, quando comparadas a um grupo controle.
Outro estudo, realizado pela Universidade de Montréal, identificou que áreas cerebrais ligadas ao prazer e à empatia foram ativadas em crianças autistas durante experiências musicais, mesmo na ausência de fala. Isso reforça o papel da música como facilitadora da conexão e do bem-estar emocional.
Vale ressaltar que a música não substitui outras terapias essenciais, como a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), a fonoaudiologia ou a terapia ocupacional. Mas, quando integrada a essas práticas, pode potencializar os efeitos e humanizar ainda mais o processo terapêutico.
Um exemplo real
Pedro tem 9 anos e está no espectro autista. Frequentemente, sente-se sobrecarregado com os sons da escola e tem dificuldade em expressar suas emoções verbalmente. Durante as sessões de terapia, passou a demonstrar interesse por um violão infantil disponível na sala. A terapeuta passou a incluir esse momento em todas as sessões.
Ao tocar as cordas do violão, Pedro começou a sorrir mais, vocalizar palavras e aceitar com mais tranquilidade as transições entre atividades. A música se tornou, para ele, uma forma de expressar o que não conseguia com palavras. Hoje, o violão é seu aliado nas sessões e em casa, sempre que precisa se acalmar.
Conclusão
Falar sobre música e autismo é falar sobre um encontro sensível entre arte e neurociência, entre emoção e estrutura, entre regulação e expressão. A música não exige explicação, não cobra resposta. Ela apenas convida a pessoa autista a estar presente, no seu ritmo, no seu tempo, com o conforto que o som pode oferecer.
Integrar a música ao cotidiano de uma criança autista é oferecer mais do que estímulo. É oferecer dignidade, escuta e conexão. Seja por meio de uma canção de ninar, de uma batida de tambor ou de um canto espontâneo no banho, a música pode ser esse fio invisível que liga o dentro ao fora, o caos à calma, o mundo interno ao outro.
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.
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