Ecolalia no Autismo: Um Caminho para Compreender e Apoiar a Comunicação

O que é ecolalia e qual seu papel no desenvolvimento da linguagem
A ecolalia, frequentemente observada no desenvolvimento da linguagem de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), é definida como a repetição em eco de palavras ou frases previamente ouvidas. Embora durante muito tempo tenha sido considerada um comportamento sem função comunicativa, estudos recentes apontam para um entendimento mais complexo e respeitoso sobre a ecolalia.
No contexto do autismo, a ecolalia pode ser uma tentativa significativa de comunicação, uma forma da criança demonstrar compreensão, expressar desejos, regular comportamentos ou se engajar socialmente. Portanto, compreender a ecolalia é essencial para promover um ambiente de apoio, onde a linguagem se desenvolve com sentido e acolhimento.
Tipos de ecolalia
Ao falar sobre ecolalia, é importante compreender que existem diferentes formas pelas quais esse fenômeno se manifesta. A literatura especializada classifica a ecolalia em três tipos principais:
Ecolalia imediata: ocorre quando a criança repete uma palavra ou frase logo após ouvi-la. Por exemplo, ao ouvir “Você quer água?”, a criança pode responder com a mesma pergunta. Apesar de parecer apenas uma repetição, pode ser uma forma de confirmar que compreendeu a pergunta ou um passo para iniciar uma resposta apropriada.
Ecolalia tardia: acontece quando a repetição de palavras ou frases surge após um intervalo de tempo. Muitas vezes, a criança repete frases de desenhos, músicas ou conversas anteriores. Essa repetição pode estar associada a uma memória afetiva, tentativa de autorregulação ou expressão de desejos.
Ecolalia mitigada: é uma forma mais sofisticada da ecolalia, na qual a repetição é modificada com algum ajuste de entonação, pronome ou vocabulário. Isso indica uma intenção comunicativa mais elaborada, demonstrando que a criança está integrando gradualmente a linguagem ao seu repertório expressivo.
Ecolalia como etapa do desenvolvimento típico e atípico
É fundamental reconhecer que a ecolalia também pode surgir em crianças com desenvolvimento típico, especialmente nos primeiros anos de vida. Muitos bebês e crianças pequenas repetem palavras dos adultos como forma de aprendizagem. A diferença, no entanto, está na persistência e na funcionalidade.
Enquanto na trajetória típica a ecolalia tende a desaparecer à medida que a linguagem espontânea se desenvolve, no autismo ela pode se manter por mais tempo e aparecer de forma mais frequente. Isso não deve ser encarado como um atraso a ser corrigido, mas como um recurso que deve ser compreendido e trabalhado com intencionalidade.
O papel da fonoaudiologia no acolhimento da ecolalia
A atuação do profissional de fonoaudiologia é fundamental na abordagem da ecolalia. Ao invés de simplesmente inibir o comportamento ecolálico, o fonoaudiólogo busca compreender o motivo pelo qual ele ocorre, qual sua função e como pode ser transformado em um caminho para a comunicação funcional.
Um bom exemplo é o trabalho com crianças que usam frases prontas de desenhos animados para expressar emoções. Ao entender o contexto dessa repetição, o terapeuta pode modelar novas formas de expressão, respeitando o ritmo da criança. A ecolalia, nesse caso, torna-se um ponto de partida para ampliar o vocabulário e a interação social.
Ecolalia como ponte para a comunicação funcional
A ecolalia pode ser vista como uma ponte entre a ausência de fala funcional e o uso espontâneo da linguagem. Em vez de rotular essa repetição como algo indesejável, devemos enxergar nela uma oportunidade para construir caminhos comunicativos mais eficazes.
Por exemplo, uma criança que repete constantemente “quer brincar” após ouvir de um adulto pode estar, aos poucos, entendendo que essa frase tem o poder de iniciar uma interação. Com apoio terapêutico adequado, ela poderá aprender a usar essa expressão de maneira intencional e, com o tempo, adaptá-la ao seu próprio estilo de comunicação.
A importância da equipe multiprofissional no processo
A ecolalia, quando observada com escuta sensível, revela muito sobre o mundo interno da criança com autismo. Por isso, o trabalho conjunto entre fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e educadores é essencial. Cada profissional contribui com um olhar específico, mas todos compartilham o mesmo objetivo: promover comunicação com dignidade e funcionalidade.
Além disso, o envolvimento da família é indispensável. Pais e cuidadores devem ser orientados sobre como responder às repetições de forma respeitosa, reforçando a função comunicativa e evitando frustrações.
Quando a ecolalia é funcional e quando pode sinalizar dificuldades
Nem toda ecolalia precisa ser modificada ou substituída. Algumas repetições oferecem conforto, regulação emocional e fazem parte da identidade da criança. No entanto, quando a ecolalia interfere significativamente na aprendizagem ou na vida social, é importante intervir com estratégias baseadas em evidências.
A Análise do Comportamento Aplicada (ABA), por exemplo, oferece ferramentas para ensinar novas formas de comunicação, utilizando a ecolalia como ponto de partida. Já a fonoaudiologia contribui com técnicas específicas para ampliar o vocabulário expressivo, promover compreensão auditiva e desenvolver a linguagem funcional.
Referências científicas que apoiam essa abordagem
A abordagem moderna da ecolalia no autismo tem sido respaldada por estudos que apontam para sua diversidade sintomática e suas possíveis funções comunicativas. Pesquisas como as de Mergl e Azoni (2015), Grillo (2020) e Rego (2016) reforçam que a ecolalia não deve ser tratada como um sintoma a ser eliminado, mas como uma forma válida de linguagem em processo de construção.
Além disso, revisões bibliográficas como a de Saad e Goldfeld (2015) destacam a importância de um olhar multifocal para a ecolalia, valorizando tanto o contexto em que ela ocorre quanto a intenção comunicativa envolvida.
Ecolalia e dignidade
Toda forma de comunicação merece respeito. A ecolalia, embora diferente da linguagem convencional, é uma tentativa autêntica da criança com autismo de se conectar com o outro. Negar essa voz é negar sua existência.
Mais do que “ensinar a falar certo”, o papel dos profissionais e familiares é oferecer escuta, acolhimento e ferramentas para que essa criança possa, aos poucos, desenvolver sua própria forma de dizer o que sente, deseja e precisa. A ecolalia, nesse processo, é um espelho da linguagem em construção.
Conclusão
A ecolalia no autismo é um fenômeno rico, cheio de nuances e possibilidades. Quando acolhida com sensibilidade e compreendida com base em evidências, ela deixa de ser um desafio para se tornar uma oportunidade.
Reconhecer o valor da ecolalia é reconhecer a inteligência, a intenção e o esforço por trás de cada repetição. E é também um convite para que todos nós — profissionais, famílias e sociedade — possamos aprender novas formas de escutar.
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.
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