Apraxia da fala infantil: quando a palavra quer sair, mas o corpo não responde

Imagine uma criança que compreende perfeitamente o que deseja dizer, mas, ao tentar expressar em palavras, os sons simplesmente não se organizam. Para muitas famílias, essa é a realidade diária da apraxia da fala infantil — um transtorno neurológico que desafia a comunicação, mesmo quando a compreensão está intacta. Neste artigo, vamos entender como ela se manifesta, como é feito o diagnóstico e qual o caminho mais promissor para apoiar o desenvolvimento da linguagem.
O que é apraxia da fala infantil?
A apraxia da fala infantil é um distúrbio neurológico motor da fala. Diferente de outros atrasos no desenvolvimento da linguagem, esse quadro não está ligado a problemas auditivos, intelectuais ou musculares. A criança sabe o que quer dizer, mas tem dificuldade em planejar e coordenar os movimentos necessários para transformar esse pensamento em palavras faladas.
Isso ocorre porque o cérebro encontra obstáculos para enviar os comandos corretos aos músculos envolvidos na fala — lábios, língua, mandíbula — mesmo estando esses músculos fisicamente saudáveis.
A apraxia da fala infantil pode ser confundida com atraso simples de fala, mas é um diagnóstico específico, que exige atenção diferenciada e intervenção especializada.
Como a apraxia da fala infantil acontece?
A apraxia da fala infantil tem origem neurológica e envolve uma falha no planejamento motor da fala. Esse planejamento é o processo pelo qual o cérebro organiza, em frações de segundo, a sequência precisa de movimentos musculares para articular sons, sílabas e palavras.
A criança pode até tentar repetir uma palavra ou sílaba, mas a cada tentativa, o erro é diferente. Isso demonstra que o problema não é apenas de articulação, mas de coordenação neurológica. Em muitos casos, a origem exata é desconhecida, mas estudos mostram que pode estar associada a fatores genéticos, traumas perinatais ou condições como paralisia cerebral.
Tipos de apraxia e a especificidade da fala
A apraxia pode se apresentar de diferentes formas no cotidiano. Alguns tipos incluem:
- Apraxia ideomotora: dificuldade em realizar gestos simples, como dar tchau.
- Apraxia ideacional: confusão na sequência de ações, como vestir-se ou fazer uma receita.
- Apraxia construcional: dificuldade em montar objetos ou desenhar.
- Apraxia bucofacial: dificuldade em movimentar boca, língua ou expressões faciais.
- Apraxia da fala infantil: foco deste artigo, afeta especificamente a produção da fala.
Cada tipo pode afetar significativamente a autonomia e a comunicação da criança, exigindo um olhar atento e individualizado.
Como é feito o diagnóstico da apraxia da fala infantil?
O diagnóstico da apraxia da fala infantil deve ser feito por um fonoaudiólogo com experiência em distúrbios motores da fala, em parceria com neurologistas, psicólogos e outros profissionais da saúde quando necessário.
Durante a avaliação, o profissional observa atentamente o padrão da fala, a consistência dos erros, a habilidade de imitar sons, e como a criança se comporta em diferentes tentativas de comunicação. Alguns dos sinais mais comuns incluem:
- Variação nos erros de fala a cada tentativa
- Dificuldade para repetir sílabas ou palavras longas
- Uso limitado de vogais e consoantes
- Discurso lento, com pausas incomuns
- Frustração ao tentar se comunicar
Exames de imagem, como a ressonância magnética, podem ser solicitados em casos complexos, mas o diagnóstico é essencialmente clínico e comportamental.
Qual é o tratamento indicado?
Embora não exista uma “cura”, o tratamento da apraxia da fala infantil é altamente eficaz quando baseado em métodos terapêuticos intensivos, consistentes e personalizados. A base da intervenção é a fonoaudiologia especializada, que pode ser complementada por outras abordagens.
Fonoaudiologia especializada
É o pilar do tratamento. A terapia envolve repetições planejadas, treino de sequências motoras da fala, uso de pistas visuais, auditivas e táteis para facilitar o planejamento e a produção dos sons. A constância nas sessões e o uso de métodos baseados em evidências, como o DTTC (Dynamic Temporal and Tactile Cueing), têm se mostrado promissores.
Comunicação alternativa e aumentativa (CAA)
Em alguns casos, especialmente quando a criança ainda não desenvolveu fala funcional, a CAA pode ser introduzida como apoio, proporcionando formas de comunicação enquanto o desenvolvimento da fala avança. Isso inclui pranchas de comunicação, gestos ou dispositivos com voz sintetizada.
Apoio transdisciplinar
Além do fonoaudiólogo, a atuação de terapeutas ocupacionais, psicopedagogos e neurologistas contribui para uma intervenção mais ampla e eficaz, promovendo não apenas o avanço da fala, mas também a autonomia e a inclusão social da criança.
O papel da família no tratamento da apraxia da fala infantil
Nenhuma intervenção terá o mesmo impacto sem o envolvimento da família. Para crianças com apraxia da fala infantil, o lar é também um espaço de prática, encorajamento e segurança emocional.
É importante que os cuidadores compreendam que a dificuldade da criança não é falta de esforço ou “preguiça de falar”. A comunicação exige um esforço cognitivo e motor muito maior do que o comum. Por isso, práticas simples como:
- Evitar concluir frases pela criança
- Dar tempo suficiente para que ela tente se expressar
- Elogiar qualquer tentativa de comunicação, mesmo que não seja verbal
- Estimular a brincadeira com sons e sílabas
Esses pequenos gestos criam um ambiente afetivo e motivador, essencial para o progresso terapêutico.
Histórias que inspiram
João, de 4 anos, chegou ao consultório sem emitir palavras inteligíveis. Os pais relatavam que ele se frustrava com frequência, principalmente ao tentar se comunicar com os irmãos. Após o diagnóstico de apraxia da fala infantil, iniciou terapia fonoaudiológica intensiva. Dois anos depois, João já se comunica com frases curtas, usa recursos visuais para complementar sua fala e, principalmente, voltou a brincar e interagir com alegria.
Casos como o de João nos mostram que, embora a jornada seja desafiadora, ela é repleta de vitórias quando há apoio, respeito e intervenção adequada.
A importância da escuta e do acolhimento
Trabalhar com crianças com apraxia da fala infantil exige mais do que técnica. Requer escuta ativa, paciência, respeito ao tempo da criança e sensibilidade para acolher a família em suas dúvidas e angústias. A reabilitação da fala é também um caminho de reencontro com a identidade, a autoestima e o direito de se fazer ouvir.
Conclusão
A apraxia da fala infantil nos ensina que a fala é mais do que som: é conexão. É a ponte entre o mundo interno da criança e os afetos que a cercam. Quando o cérebro falha no comando, cabe a nós, profissionais e familiares, construirmos novas rotas. Com amor, ciência e persistência, é possível transformar o silêncio em expressão.
Assinatura oficial da autora:
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.
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