Crianças não verbais: como promover comunicação funcional e dignidade desde os primeiros sinais

Introdução
Ao falarmos sobre crianças não verbais, é comum que a atenção se concentre exclusivamente na ausência da fala. No entanto, comunicar-se vai muito além do uso de palavras. Muitas crianças com Transtorno do Espectro Autista, apraxia de fala ou deficiências neurológicas não falam, mas comunicam-se ativamente por meio de gestos, expressões, olhares e outras formas alternativas.
No Grupo Estímulos, acompanhamos diariamente crianças não verbais que possuem desejos, pensamentos, sentimentos e intenções comunicativas. Elas apenas precisam de meios adequados para se expressar e serem compreendidas. Este artigo tem como objetivo ampliar o olhar sobre essas crianças e apresentar práticas baseadas em evidências para o ensino da comunicação funcional.
O que significa ser não verbal
Ser não verbal não é o mesmo que ser silencioso. Crianças não verbais podem ter linguagem receptiva preservada, ou seja, compreendem comandos, reagem ao ambiente e até antecipam rotinas. O termo não verbal refere-se à ausência ou severa limitação da fala funcional, sem que isso signifique ausência de linguagem interna, pensamento ou afetividade.
Segundo Tager-Flusberg et al., o conceito de crianças não verbais precisa ser entendido com cuidado. Muitas delas emitem sons, vocalizações e até palavras soltas, mas sem uso comunicativo intencional. Outras utilizam gestos, apontam para objetos ou entregam itens com o objetivo de se fazerem entender. Por isso, mais importante do que rotular é identificar os potenciais já existentes e apoiar sua expansão.
Como identificar intenção comunicativa em crianças não verbais
Crianças não verbais comunicam-se de muitas formas. A intenção comunicativa pode se manifestar por meio de pequenos gestos que nem sempre são facilmente reconhecidos. Um olhar direcionado, o ato de levar a mão de um adulto até um objeto, uma vocalização específica diante de algo desejado ou até o afastamento de algo indesejado são formas de comunicação.
Segundo Paul, Norbury e Gosse, esses comportamentos pré-verbais demonstram que a criança deseja interagir com o mundo e deve ser incentivada. É fundamental que adultos atentos valorizem essas tentativas, respondam a elas e as reforcem positivamente. É nesse contexto que se inicia a construção da comunicação funcional para crianças não verbais.
O que ensinar primeiro às crianças não verbais
Quando pensamos em desenvolver a comunicação em crianças não verbais, o foco deve ser a funcionalidade. O objetivo não é necessariamente aumentar o vocabulário ou estimular a fala de palavras isoladas, mas sim garantir que a criança consiga expressar desejos, necessidades, recusar algo e iniciar interações.
As primeiras habilidades ensinadas geralmente incluem pedidos simples como quero mais, ajuda ou acabou. Também são fundamentais a recusa, a escolha entre opções, a solicitação de atenção e a expressão de sentimentos básicos. Segundo Cooper, Heron e Heward, o ensino por tentativas discretas, aliado ao uso de reforçadores específicos e preferidos pela criança, favorece avanços consistentes no processo comunicativo.
O papel da comunicação aumentativa na vida das crianças não verbais
A comunicação aumentativa e alternativa, conhecida como CAA, é uma ferramenta essencial para crianças não verbais. Ela oferece recursos visuais e simbólicos para que a criança consiga expressar-se com clareza. Esses recursos podem incluir pranchas com figuras, cartões com palavras ou frases, aplicativos com saída de voz e gestos convencionados.
Beukelman e Mirenda demonstram que crianças não verbais que utilizam sistemas de CAA apresentam menos comportamentos de frustração, maior participação social e, em muitos casos, desenvolvimento posterior da fala. A CAA não substitui a fala, mas oferece uma ponte entre a intenção comunicativa e a compreensão do outro. É um direito de toda criança não verbal poder dizer o que sente, deseja ou recusa, mesmo que sem palavras.
Superando o estigma em torno das crianças não verbais
Infelizmente, ainda existe muito preconceito em torno do uso de recursos visuais ou tecnológicos para comunicação. Muitos pais temem que o uso da CAA impeça o desenvolvimento da fala. No entanto, estudos como os de Millar, Light e Schlosser mostram que o uso de comunicação aumentativa pode favorecer a linguagem oral, pois reduz a ansiedade, aumenta as interações e promove reforço social para a comunicação.
O maior desafio está na mudança de mentalidade. É preciso compreender que toda forma de comunicação é válida. O foco deve estar na funcionalidade e na qualidade das interações. Crianças não verbais têm direito de serem compreendidas, e isso começa quando reconhecemos e respondemos às suas tentativas de comunicação.
A importância da escuta ativa para crianças não verbais
Escutar uma criança não verbal é um exercício de presença. Requer atenção aos sinais, sensibilidade para perceber o que não é dito com palavras e disposição para validar cada gesto como uma tentativa legítima de conexão. A escuta ativa envolve responder de forma significativa ao que a criança tenta comunicar, mesmo que isso demande tempo e tentativas.
Uma criança não verbal que entrega um copo vazio pode estar pedindo mais suco. Outra que se recusa a calçar um sapato pode estar expressando desconforto. Cabe ao adulto interpretar essas pistas e oferecer suporte respeitoso. Assim, a criança aprende que se comunicar vale a pena, pois sua mensagem é recebida e respeitada.
Um exemplo que inspira
Durante o atendimento a uma criança não verbal de quatro anos, percebemos que ela sempre empurrava o prato quando estava satisfeita. Embora não dissesse nenhuma palavra, esse comportamento era constante. Decidimos introduzir uma imagem com a palavra acabou e, em poucas sessões, ela passou a apontar o cartão antes de empurrar o prato.
Esse pequeno avanço revelou muito. Mostrou que a criança compreendia a situação, desejava expressar-se e podia aprender novos meios de fazê-lo. A introdução da CAA foi um divisor de águas. A partir disso, novas imagens foram acrescentadas e, em pouco tempo, ela já conseguia fazer escolhas, pedir ajuda e indicar desconforto. Cada conquista reforçou sua autoestima e reduziu episódios de frustração.
Conclusão
Crianças não verbais não são invisíveis. Elas têm muito a dizer, e o nosso papel é criar os caminhos para que sejam ouvidas. A comunicação vai além das palavras. Ela acontece no olhar, no gesto, no toque e em cada tentativa de conexão. Com o uso de estratégias baseadas em evidências, o apoio da comunicação aumentativa e uma escuta verdadeiramente sensível, é possível promover linguagem funcional, vínculos afetivos e inclusão real.
No Grupo Estímulos, acreditamos que nenhuma criança deve ser deixada em silêncio. Toda forma de comunicação é uma ponte. E cada ponte construída com respeito e acolhimento fortalece a dignidade e o futuro das crianças não verbais.
Depois de refletirmos sobre a importância da comunicação funcional em crianças não verbais, é essencial também compreender os marcos do desenvolvimento típico da linguagem. Muitos pais e profissionais têm dúvidas sobre quando se trata de um atraso de fala ou um atraso mais amplo de linguagem. Para aprofundar essa diferença e entender como a fonoaudiologia pode atuar desde os primeiros sinais, preparamos um vídeo que complementa este artigo com informações claras e acessíveis.
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Assinatura oficial da autora:
Artigo escrito pela Dra. Letícia Bringel, psicóloga especialista em Autismo (CRP 23/504), Mestra em ABA pela PUC/GO, Supervisora CABA BR 2024/005 e CEO do Grupo Estímulos e da Comunidade Estímulos Brasil.
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